A importância das fontes na formação da cidade do Salvador

Por Maria Luiza Rudner*

A água foi um fator determinante na escolha do local onde Tomé de Souza decidiu fundar uma povoação em 1549, seguindo as ordens de D João III, rei de Portugal “... espero que esta seja e deve ser em um sítio sadio e de bons ares e que tenha abastança de água, e porto em que possam amarrar os navios (...) porque todas essas qualidades (...) cumpre que tenha a dita fortaleza”. Mesmo antes da chegada de Tomé de Souza, no Século XV, navios europeus que aqui aportaram para explorar matérias-primas, principalmente o pau-brasil, utilizavam a água aqui existente para abastecer suas embarcações, pois a mesma era abundante e de boa qualidade. A qualidade e fartura dos recursos hídricos existentes foi um dos principais fatores que influenciaram na escolha da área para a edificação da cidade.

O ano de 1549 registra dois episódios marcantes na história da engenharia militar portuguesa: “a construção da Fortaleza de Salvador e o abandono da praça marroquina de Alcácer-Ceguer e do monte a ela sobranceiro denominado Seinal”, (...) “essas duas urbis têm em comum a técnica da avaliação do sítio: o porto, as elevações e, sobretudo, o abastecimento de água”. Acontece que havia uma grande diferença entre as duas localidades. Em Salvador a água era abundante e no Seinal, escassa.”A primeira prosperou; a segunda foi abandonada”. (FILHO, Luis Walter Coelho, 2004, p. 121).

A cidade foi construída num “sítio sadio e de bons ares”, com água abundante e magnífico porto, conforme a coroa portuguesa ordenava a Tomé de Sousa, este a fez num alto e longo promontório, cercado de água por todos os lados.Corroborando, AZEVEDO escreveu (1949 p. 335):

(...) na sua procura de um bom lugar para a “povoação grande e forte”, conseguiu encontrar um monte que tinha para o lado de terra um ribeiro bem farto e numerosos olhos d água nas encostas, condição essa muito vantajosa, pois havia que contar com muita água para os gastos caseiros e ainda o preparo da argamassa das taipas com que se fariam as casas, a cerca e os baluartes.
Mesmo ao norte, onde a terra busca o continente, havia rios e mananciais em abundância. A obtenção de água, contudo, era dificultado por desaguarem quase todas as fontes no sopé da grande montanha. A situação era ainda mais difícil, porque nos limites da cidade não havia água potável com exceção da Fonte do Gravatá, “imunda e pior de todas” - provavelmente por ser a mais procurada.

A água das fontes mais próximas, como a dos Padres e a do Pereira, eram salobras. A primeira havia sido construída pelos jesuítas na base da ladeira do Taboão, e abastecia, além do colégio da Ordem, a área das Portas do Carmo e as embarcações fundeadas no porto. A segunda, estrategicamente localizada no início da ladeira da Misericórdia, em frente ao porto abasteceu, como a primeira, navios que chegavam em Salvador. No que concerne aos recursos hídricos de Salvador, MATTOSO observa (1978 p. 47):

Há água em toda parte. Com efeito, o solo cristalino do horst (compartimentos de solos duros, elevados entre falhas) é impermeável, mas a espessa camada oriunda de sua decomposição é extremamente porosa, servindo de reservatório a água sempre renovada nesse clima úmido. A porosidade do solo é de cerca de 20% (cada m3 é capaz de conter duzentos litros de água), e sua espessura média é de vinte metros. É fácil imaginar o enorme reservatório representado pelo solo da Cidade Alta: é só cavar para ter um poço. Basta um afloramento, ao contato com a rocha matriz e com seu solo em decomposição, para ver jorrar uma nascente. Os mananciais e as fontes estão em toda parte em Salvador, na base do horst como nas trilhas de menor fratura, do menor deslocamento de terreno, do mais insignificante vale. São águas cristalinas, filtradas naturalmente, ricas em sais minerais.
Ainda segundo MATTOSO, “Reabastecer navios e tripulações tornou-se, por conseguinte, uma das funções de Salvador. Os navios permaneciam freqüentemente três meses no porto para reparos, para reabastecimento” Vemos com isto que a água era abundante. (...) “a água doce, excelente e de fácil acesso, brota, como vimos, em toda parte, de modo que quase todas casas tem seu poço”. Continua: “o reabastecimento era feito nas fontes da Gamboa ou na de Água de Meninos”.(MATTOSO, 1978, p.48).

A água realmente foi ponto fundamental. Corroborando FILHO escreveu:
(...) o porto e a disponibilidade de água definiram o local. Gabriel Soares informa que Tomé de Souza desembarcou na Vila Velha e mandou a frota procurar porto adequado e abrigado.Encontrou “porto limpo e abrigado” e, defronte dele, “uma grande fonte à borda da água que servia para aguada dos navios e serviço da cidade”.
O local escolhido foi louvado por todos. O jesuíta Manuel da Nóbrega afirmou ser o sítio muito bom, cercado de “água ao redor da cerca” e com muitas outras “fontes da parte do mar e da terra”. A melhor descrição sobre a disponibilidade da água para a cidade pertence a Gabriel Soares. Ele escreveu que a cidade tinha grandes desembocadouros “com três fontes na praia ao pé dela” nas quais os mareantes faziam aguada. Na parte leste existia uma “ribeira de água” com sua nascente e em vários outros lugares outras fontes. (FILHO, Luis Walter Coelho, 2004, p. 124/125,).

Sobre á água utilizada no Colégio dos Jesuítas, COSTA escreveu:
(...) tratando especificamente acerca dos poços, (...) as indicações da planta de Caldas, [José Antônio Caldas, 1758] demonstram a existência de três poços no Colégio: um no quintal na área dos recoletos, um no Pátio da Cozinha e um no Pátio dos Estudos Gerais. Além destes poços, informações históricas apontam para existência de mais um, que, pelas dimensões de aproximadamente 19,8 m de profundidade e 13,2 m de diâmetro, só podia estar no Pátio dos Padres, que tinha a maior área aberta e a única que comportaria um poço com este tamanho. Admitindo-se estas informações, o colégio teria cinco poços, um em cada setor de serviço.(COSTA, 2005, p.117).

Numa visita ao MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da UFBA é possível visualizar o que sobrou do antigo poço, “um poço de noventa palmos de alto, e sessenta em roda, (...), de boa água, que deu muito alívio a este Colégio, que por estar em um monte alto, carecia de água suficiente para as oficinas”.(Gouveia apud Leite, 1945ª [1583]: 54).

As fontes naturais de água foram de extrema importância para o desenvolvimento da cidade, uma vez que, eram utilizadas para o abastecimento da população. Inicialmente, o abastecimento era feito através de bicas e minadouros, localizados e indicados “provavelmente” pelos indígenas que viviam nessas terras. Com o passar do tempo, fez-se necessário a construção de fontes e chafarizes, muitos deles ainda em uso, como é o caso da Fonte das Pedreiras na Avenida Contorno e as águas que minam por toda ladeira da Montanha, onde as pessoas “improvisavam” bicas para recolher a água e usar tanto para banho quanto para beber.

À medida que a população ia aumentando, conseqüentemente o consumo da água aumentava. Existiam algumas fontes particulares, outras públicas e muitas vezes ocorreram alguns conflitos gerados por apropriação indébita. Afirma SAMPAIO (2005, p, 107) que: “Era vergonhosa a apropriação indébita que “homens de bem” faziam de fontes públicas, desviando nascentes para o quintal de suas casas”. Pode-se perceber que já nesta época existiam pessoas “corruptas”. Isto não é uma prática atual, talvez não fosse tão abertamente como nos dias de hoje. Percebe-se também que aqueles que detinham o “poder de mando”, a “autoridade” já a usavam em beneficio próprio, como se percebe neste trecho de (SAMPAIO, p. 107).

A violência se agravava com a “insolência dos insubordinados soldados, que obrigavam os escravos a levar água para onde bem quisessem. Se não obedecessem, era infalível o quebrar-lhes as vasilhas e dar-lhes muita pancada, quebrando a cabeça de muitos pretos que ficavam aleijados ou morriam.

Vale ressaltar que constantemente ocorriam tumultos entre os próprios escravos na disputa pelo precioso líquido, algumas vezes chegavam até ocorrerem mortes.

A população crescia na medida em que a cidade se expandia. Salvador abrigava cerca de 150 mil habitantes em meados do século XIX. E esta população lutava desesperadamente para ter água em casa. Na oportunidade foi feito um balanço das fontes da cidade, que é importante referenciar, exposto por SAMPAIO (2005 p. 105 /107).

Com o objetivo de colaborar com “a salubridade” pública na parte que toca à higiene das águas potáveis”, o diretor do Imperial Corpo de Engenheiros, tenente coronel João Blöem, encaminhou, em 1848, um programa de trabalho, com a necessária cautela para não “criminalizar” a ninguém, não ofender a milindre dos membros da respeitável Câmara Municipal, a quem está sujeito tudo que diz respeito a fontes públicas (SAMPAIO, 2005, p. 105, 107)

No que concerne ao estado das fontes observa:

(...) o estado presente em que estão as fontes públicas é lastimoso. Pela sua má construção, há nelas infiltrações de águas impuras, um efetivo mau cheio, pelos ciscos podres que se observam nelas, com a falta de tanque em suas frentes, que sirvam de receber as águas”. A seguir, mostra a importância da construção de tais tanques, destacando três pontos: em primeiro lugar, eles beneficiaram os “pobres escravos que de madrugada, e na alta noite são obrigados a buscar água e umedecem os pés e roupa, de maneira que quando se deitam dormem na umidade, e assim estragam sua saúde”, em segundo seriam importantes depósitos de água dos quais, nas ocasiões de incêndios, “facilmente se extrairiam água, o que não acontece nas bicas”, em terceiro, serviriam de “bebedouro aos animais necessitados”. E, acrescentamos, de lava-pés para carregadores, livres ou não. (JOÃO BLÖEM, 1848 apud SAMPAIO, 2005, p. 105-107)
Percebe-se que João Blöem era um homem com uma visão voltada para o social, preocupava-se com a saúde dos escravos. O mesmo também já falava em qualidade da água. Sabe-se hoje que muitas doenças têm a água como vetor. Seja por contaminação por sujidades ou infiltrações...

Na época armazenava-se a água, tanto nas casas quanto nos escritórios, em talhas, tanques, potes de barro e moringas. Por todos os lados via-se cisternas e cacimbas. Os aguadeiros eram figuras indispensáveis no abastecimento de água, sobretudo aquelas casas que não tinham suas fontes particulares. Quanto mais a população crescia, a demanda pela água aumentava.

Em 1850 a cidade foi assolada pela “cólera morbis”. Esta peste dizimou grande parte da população. A mesma estava ligada às precárias condições de higiene da cidade. Urgia a necessidade de prover a cidade um abastecimento de água constante, regular. A situação é registrada por SAMPAIO (2005 p. 108):

Em 1852, o governo da Província alocou no orçamento 150 contos de réis para estudos de implantação de um serviço de canalização de água para Salvador. Este incentivo resultou na criação da Companhia do Queimado pela lei Provincial nº 451, de 17 de junho de 1852, cuja finalidade era distribuir água potável à população através de chafarizes, casas de venda d’água e penas d’água (a pena d’água era uma peça móvel que controlava a quantidade de água liberada pelos chafarizes).
A Companhia do Queimado foi um marco importante no desenvolvimento de Salvador. Este sistema de abastecimento trouxe melhoria para a população ao nível de salubridade. A companhia era uma empresa privada, cuja finalidade era prover a cidade com um abastecimento constante. Em 8 de dezembro de 1852, a pedra de lançamento da companhia foi assentada. O contrato com o governo foi assinado em 17 de janeiro de 1853, dando à mesma um monopólio por 30 anos, além da isenção de direitos alfandegários, confirma SAMPAIO (2005 p. 108):
(...) o governo concede a todas as companhias voltadas para o serviço público. Deveriam pagar apenas a taxa de 1% relativa a expediente (Serviços alfandegários). (...) Nos termos de contrato, deveriam ser construídos inicialmente 12 chafarizes, cinco na cidade baixa, entre Água de Meninos e Conceição da Praia, e sete na cidade alta, entre a Cruz do Pascoal e o Largo da Piedade.
Os referidos chafarizes foram importados da Europa e tão logo chegaram, deu-se início as obras e o abastecimento pela Companhia do Queimado começou a funcionar em 7 de janeiro de 1857. A água era vendida à população ao preço de 20 réis. SAMPAIO escreveu:

(...) O manancial da companhia era o rio do Queimado, uma das nascentes do rio Camurugipe; nele se construiu uma barragem que produzia em torno de 1.000 m² de água por dia distribuída por 22 chafarizes em diversos pontos da cidade. (2005, p.110).
Os chafarizes espalhados pela cidade eram insuficientes para o consumo e poucas pessoas podiam se dar ao luxo de possuir uma pena d’água em sua residência. Com isso a Companhia do Queimado criou casas de vender água.

Apesar de todo esforço da Companhia do Queimado de prover a população de água, o abastecimento se tornava mais deficiente à medida que a população crescia. Por esta razão teve início a construção do reservatório da Cruz do Cosme, considerado o primeiro no Brasil feito de alvenaria.

Em 1905 ainda funcionavam 22 chafarizes e sete casas de venda água e aos poucos foram sendo desativadas gradualmente, (SAMPAIO, 2005 p.113).

Com a finalidade de minimizar a deficiência na distribuição de água, foi construída a barragem de Mata Escura, represando o rio Camurugipe, porém às primeiras décadas do século XX, Salvador ainda padecia do grave problema de abastecimento de água.

A partir deste período, foram realizados estudos, discussões, projetos e obras, cuja finalidade era avaliar a capacidade dos mananciais com o objetivo de ampliar a captação e distribuição da água na cidade.

Atualmente, Salvador é abastecida com água tratada e canalizada pela EMBASA. Porém, o consumo das águas das fontes por pessoas de baixa renda é bem maior do que se pode imaginar.

Essas águas são utilizadas para diversos fins a exemplo de: irrigação de hortas e jardins, higiene pessoal, lavagem de carro, consumo doméstico.

Outra avaliação das fontes:
(...) constatou-se que as águas das fontes naturais de Salvador são normalmente classificadas como doces e de boa qualidade físico-químicas. Entretanto, em alguns locais, há indícios de processos de contaminação por atividades humanas, provavelmente por ocorrência de fossas sépticas e negras, latrinas e esgotos nas proximidades, como é o caso das fontes do Guetho, Tororó, Queimadinho e Instituto de Biologia. (P. M. S., 2006 p. 14).
Inertes, algumas corroídas pela ação predatória do homem, as fontes de Salvador, monumentos arquitetônicos de imenso valor histórico-urbanístico, encontram-se parte delas em completo estado de abandono, provando com isto, a falta de determinação de nossos políticos para com um patrimônio histórico e cultural, que durante muito tempo matou a sede da população e algumas delas ainda dão sustento a uma parte menos favorecida, apesar do desenvolvimento no sistema de abastecimento. Parte das mesmas desapareceu sob o peso das transformações urbanísticas.

Construídas na época do império, as fontes e chafarizes tiveram vida útil por muito tempo. Cercadas de lavadeiras com suas trouxas de roupa, carregadores de ganho, aguadeiros, eram mais que simples mananciais que abasteciam a população,

A partir do momento em que Salvador passou a ter um sistema de abastecimento de água regular, fornecido pela EMBASA, registrou-se o abandono e a degradação ambiental dos logradouros, com a ocorrência de focos potenciais de contaminação nas suas proximidades. As fontes que tanto contribuíram no passado, na construção de nossa cidade, têm uma importância histórica relevante, a ponto de algumas, serem patrimônio histórico cultural de Salvador. As lendárias fontes de águas cristalinas da cidade tiveram no passado, grande destaque sócio-cultural. Muitas delas desapareceram, outras se encontram em ruínas. Houve tempo em que eram utilizadas com total segurança pela população, em uma época que não havia sistema de abastecimento e dessas fontes jorravam água de boa qualidade. Em vista disto, faz-se necessário uma tomada de consciência, a fim de preservar as fontes que ainda existem.

* Especialista em Desenvolvimento Regional e Planejamento Ambiental, Turismóloga, membro da Oficina de Planejamento Turístico e também atua em projetos que tem como foco aspectos sociais e ambientais.


REFERÊNCIAS
Atlas Ambiental Infanto Juvenil de Salvador. Salvador: Gráfica Santa Helena, 2006.
AZEVEDO, Thales de, Povoamento da cidade do Salvador. Salvador; Tipografia Beneditina, 1949. Volume III.
COSTA, Carlos Alberto Santos, A Influência do Colégio dos Jesuítas na Configuração da Malha Urbana de Salvador – Ba (1549 – 1760). Recife, 2005.
FILHO, Luis Walter Coelho, A Fortaleza do Salvador na Baía de Todos os Santos, Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2004.
MATTOSO, Kátia Mª de Queiroz; Bahia, Século XIX, Uma Província no Império.Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1992.
SAMPAIO, Consuelo Novais: 50 anos de urbanização. Salvador da Bahia no século XIX Rio de Janeiro: Versal, 2005.